quinta-feira, 24 de abril de 2008

A AMOROSA E SOLIDÁRIA JORNADA NACIONAL DE LUTAS POR REFORMA AGRÁRIA

A AMOROSA E SOLIDÁRIA JORNADA NACIONAL DE LUTAS POR REFORMA AGRÁRIA

MST – 2008

As iniciativas de luta social dos trabalhadores e trabalhadoras rurais
sem terra, em particular aquelas que há 12 anos são concretizadas pelo
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST --- e que histórica e
legalmente foram sintetizadas como a Jornada Nacional de Lutas por
Reforma Agrária, ressaltaram neste ano de 2008 duas dimensões que por
vezes são pouco distinguidas: a amorosidade e a solidariedade que se
fazem presentes nessa jornada de lutas.

Ao se rememorar no 17 de abril o massacre de Eldorado de Carajás não se
busca tão somente a permanente solidariedade às famílias dos
trabalhadores e trabalhadoras sem terra assassinados, mutilados e
feridos nesse episódio de anos atrás. Nesta data se reafirma
emblematicamente que a luta social pela reforma agrária e por justiça
social no campo continua viva e revivificada pelo desprendimento de
milhões de famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra e
de camponeses e camponesas com pouca terra.

Sem dúvida alguma que não bastariam os reclamos e reivindicações formais
e burocráticos desses trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra
perante os governos, iniciativas essas que se fazem no cotidiano. Também
já se tornou lugar comum que a classe dominante brasileira e, nela o
agronegócio, é absolutamente reacionária com relação aos interesses e
desejos populares, mais ainda aqueles que enfatizam a necessidade de
mudanças democráticas e sociais na estrutura fundiária do país.

Os interesses do capital e, portanto, da sua reprodução na busca
incessante do lucro, não são critérios capazes de balizar a necessidade
de reforma agrária no país. Menos ainda o são os interesses e desejos
dos grandes e reacionários empresários que constroem a hegemonia dessa
classe social. A herança da 'grande fazenda' e a mentalidade (que se
renova) discriminatória social, étnica e de gênero desses empresários
travestidos de modernos apenas ressaltam as manchas éticas que neles
permaneceu da cultura e economia escravagista onde o outro, seja o
índio, o negro, o branco ou o mulato, foi e ainda permanece um objeto,
por vezes elevado à categoria de mercadoria, passível de ser disposto
conforme os interesses de seus donos.

As ocupações de terras improdutivas ou daquelas que não cumprem a função
social disposta em lei; a ocupação de prédios públicos e privados que se
tornam referência exemplar da omissão dos governos e da indiferença das
empresas privadas perante a desigualdade econômica e social; a ocupação
de ferrovias, de postos de pedágio e de agências bancárias; enfim, essas
ocupações sempre episódicas e temporárias, são portadoras de uma
mensagem sutil, mas vigorosa: o povo pobre e desprovido de
possibilidades econômicas efetivas de garantia da reprodução de suas
vidas pessoais e familiares, não se deixará morrer à mingua e na
subserviência como faz supor grande parte das políticas públicas e a
maior parte das práticas econômicas do empresariado.

A luta pela garantia da vida e da sua reprodução com dignidade é antes
de tudo um gesto de amor. As práticas das lutas sociais, ainda que
endurecidas pelos desaforos daqueles que deveriam as compreender melhor,
é a expressão extremada da amorosidade pelo viver, por essa paixão que a
esperança alimenta e que a solidariedade reafirma a cada gesto social.
As famílias de trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra que se
expõem aos riscos pessoais e familiares que as ocupações podem
proporcionar, ainda que não seja essa a intenção dessas iniciativas,
estão lutando não apenas pela sobrevivência com dignidade, mas,
sobretudo, pela justiça social e a possibilidade de se tornarem sujeitos
da sua história que uma reforma agrária ampla, massiva e imediata
poderia proporcionar. Nessa ação de risco de vida está entrelaçada, de
uma certa maneira, a solidariedade na ação entre as pessoas e as
famílias, seja no compromisso com o seu futuro pessoal e com o dos seus
descendentes, seja no respeito aos feitos das lutas sociais das pessoas
e famílias que os fizeram acontecer num passado que se faz presente, com
uma amorosidade sem limite que somente o desprendimento possível de suas
vidas em luta pelas vidas de uma imensa massa de trabalhadores e
trabalhadoras poderia consagrar.

Quando empresas privadas como a Vale, a Syngenta, a Monsanto, a Cargill,
a Aracruz, a Votorantin, a HSBC, a Itaú, a Bradesco, a Rede Globo, entre
tantas outras que se fazem emblemáticas do comportamento que defende a
manutenção da desigualdade social, o atraso cultural das massas, a
discriminação étnica e de gênero e a depredação do meio ambiente, quando
essas empresas ensaiam criminalizar as ocupações, e reproduzem a
ideologia de que esses trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra
são terroristas, o que estão acentuando nas suas práticas empresariais e
nos discursos políticos que querem fazer passar aos olhos da opinião
pública como lições éticas --- supostas no fundo de todas as razões que
as iluminam, é que os interesses das classes populares são antagônicos
aos interesses de classe da burguesia.

Quando as massas populares desejam melhores condições de vida e de
trabalho, e os trabalhadores e trabalhadoras rurais sem terra lutam pela
reforma agrária e por seus interesses imediatos setoriais, o que o
empresariado vislumbra, e a ideologia reacionária que os move já o fazem
sentir no bolso, é que esses pobres do campo e da cidade estão querendo
fazer é distribuição social da renda e da riqueza, renda e riqueza que
se encontra concentrada nas mãos dos próprios capitalistas. Ora, isso é
aviltante para o empresariado. Contraria a ordem capitalista neoliberal
das coisas. Ao povo o salário, a bolsa-família ou a misericórdia. Aos
ricos, aos empresários capitalistas, o lucro, os juros, a renda da
terra, a apropriação privada do patrimônio público, a liberdade de
degradação ambiental, o usufruto privado e comercial da natureza, o
controle do saber científico e tecnológico, as patentes, a globalização
da circulação das mercadorias e dos capitais. Enfim, o aumento
continuado da renda e da riqueza nas mãos de poucas e grandes empresas e
a manutenção da desigualdade social, então compreendida pela ideologia
dominante como uma determinante histórica.

Que bom seria se não fossem necessárias as iniciativas das lutas sociais
populares, a Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária, as
ocupações, os confrontos sociais e os desencontros. Que bom seria se
vivenciássemos uma sociedade socialmente igualitária e mais justa. Que
bom seria se a solidariedade e a fraternidade fossem as práticas do
nosso cotidiano. Mas, não diria eu que essa seria uma vã utopia, porque
quimera. Muito ao contrário, é um mundo que se faz necessário.

Quem bom seria se o MST se esvaecesse no ar, porque já não mais seria
socialmente necessário. Mas, enquanto isso não sucede desejo longa vida
ao MST, e que a Jornada Nacional de Lutas por Reforma Agrária não deixe
de salientar as dimensões da amorosidade e da solidariedade que lhe
tingem a vida de vermelho por pulsar em demasia o coração.

(Horacio Martins de Carvalho. Curitiba, 18 de abril de 2008)